Forte de Santo António da Barra: reconhecer valor a uma memória

Opinião




Em pleno Ano Europeu do Património Cultural, é com enorme tristeza que constato que, à semelhança de tantos outros edifícios de relevo, o Forte de Santo António da Barra (Forte Velho), em São João do Estoril, mandado edificar em 1590 por Filipe I, se encontra em processo de degradação e de abandono.

Este imóvel com mais de 400 anos de história, classificado de interesse público, teve um importante papel no âmbito da Restauração, constituindo uma peça fundamental do sistema de defesa marítima de Lisboa, mas é sobretudo reconhecido por ter sido, durante o Estado Novo, a residência oficial de férias de Oliveira Salazar.

Numa altura em que as políticas e ações de salvaguarda e valorização do património se apresentam em decadência e se desenvolvem com menor intensidade, as prioridades patrimoniais parecem distorcer-se e as responsabilidades não são assumidas pelas entidades competentes. Apesar de ser do Estado a grande responsabilidade de manutenção do património, não pode haver uma desresponsabilização do todo enquanto sociedade, pois só “apontar o dedo” é uma inércia que não leva a soluções concretas.

Este caso em particular tem sido tema de destaque nos meios de comunicação social nos últimos tempos. Mas afinal o que é isto de património cultural?

Podemos, de modo simples, definir património como aquilo que herdamos dos nossos antepassados. No caso do património cultural, é um triângulo perfeito entre passado (o que herdamos), presente (como o tratamos) e futuro (o que deixamos às gerações vindouras). Se por um lado “herdar” pressupõe o direito a essa herança, por outro lado cria também o dever de proteger, valorizar e conservar esse “legado” para que ele possa continuar a fluir naturalmente no futuro. 

É sabido que já em Roma havia um conceito de monumento, mas apenas enquanto edifício dotado de monumentalidade. No entanto, a consciencialização social da importância da salvaguarda do património já estava bastante presente no período Renascentista, enquanto noção de património histórico. A par do “ruinismo”, o colecionismo, ligado ao mesmo conceito, era cada vez mais emergente e teve um papel fulcral no conceito e salvaguarda do património arqueológico móvel. É de ter em conta que este conceito só se consolida e se institucionaliza no decurso do século XIX, em consonância com o movimento Romântico e na sequência dos primeiros inventários de imóveis susceptíveis de proteção e da criação dos primeiros organismos públicos, cuja missão era a de salvaguardar imóveis de reconhecido valor.

Para compreender o colecionismo é igualmente imprescindível compreender a palavra museu, uma vez que o primeiro se apresenta como fenómeno sociocultural indispensável ao segundo, evidenciando inclusivamente respeito e proteção pelo património cultural. Como resultado do colecionismo surgiram grandes coleções. Mas se o colecionismo era o ato de guardar, o museu aqui apresentava-se como a necessidade de estudar e preservar aquilo que era guardado. Esta crescente consciência de juntar tudo, quer para o seu estudo, quer para a sua salvaguarda num local adequado, levou ao aparecimento dos museus. Estes seriam lugares de refúgio, para aquilo que viríamos a chamar de património, carregado do que mais tarde intitularíamos de valores de memória e identidade. É interessante a forma como olhamos para o passado e vemos nele por vezes as bases de um futuro melhor com apreensão de conhecimentos antigos que se apresentam atuais. Foi precisamente o que aconteceu no Renascimento Italiano. 

O contacto com obras antigas impulsionou novas possibilidades, depreensões culturais, recriações dessa cultura clássica e até uma maior consciência da dimensão temporal da existência humana. Apesar dos seus inúmeros problemas, não podemos negar o contributo do colecionismo à criação de museus. Posto isto, poderemos então depreender que o colecionismo está na génese da valorização dos vestígios do passado e na origem dos museus, sendo que estes estão na origem do interesse patrimonial, que por sua vez está na origem da valorização desse património e o desenvolvimento do conceito de património. Esta sequência termina na origem do valor turístico atribuído ao património. 

Quanto aos meios para a salvaguarda do património, além do turismo e da educação cultural, são vários e foram constantemente reforçados de defesa legal, ainda que por vezes insuficiente, dos quais destaco a classificação, inventariação, leis, decretos, cartas, convenções, restauros e a conservação dos bens culturais.

Uma forma recente de proteção poderá ser feita a partir da exploração do turismo que incide essencialmente no património cultural edificado; daí, nasce o interesse do turismo pelo património histórico, mas também pela cultura material (museus); sítios arqueológicos visitáveis. O Turismo Cultural pode ser considerado como um reativador do património cultural, na medida em que com ele se poderá promover o acesso à cultura, e, talvez, a sua manutenção e gestão a partir de fundos gerados por todos, ajudando a desenvolver populações locais através de parcerias sustentáveis e dinamizando o património para que não só acompanhe a Nova Era como resista à mesma.

Não obstante as vantagens que o turismo possa ter para a salvaguarda, gestão e proteção do património cultural, não nos podemos esquecer que existem sempre duas faces de uma mesma moeda. Numa outra face temos os interesses económicos de determinado(s) indivíduo(s), ou grupo. Nestes casos, não há sequer a preocupação com aquilo que é de todos. O turismo aqui pode e deve ser um contributo para a sua gestão, divulgação e manutenção, mas não pode jamais vendê-lo. O turismo cultural existe para servir o património e não o contrário. Além disto, sem base económica não há turismo, porque o património tem valor económico per si, devendo o turismo, que lucra com o objeto, pagar para manter o património. Dado que o valor económico do património é o próprio património, o turismo pode ir buscar esse valor, mas nunca mercantilizar aquilo que é de todos. Não se trata apenas de um negócio, até porque se o fosse, o valor de sustentação do turismo morreria à nascença.  

Se o Estado tem o dever a obrigação de salvaguardar e proteger o património cultural, as Câmaras Municipais, em conjunto com as associações, devem promover atividades lúdicas de interesse patrimonial. A comunidade científica, por sua vez, deve divulgar cada vez mais os seus trabalhos, democratizando o conhecimento. Os media devem dar mais ênfase não apenas às novas descobertas, mas também ao património já conhecido; mediatismo, divulgação/sensibilização da comunidade científica e dos meios de comunicação. 

Em suma, apesar do Forte de Santo António da Barra já ter sido classificado como imóvel de interesse público falta-lhe uma liderança responsável capaz de valorizar e recuperar a dignidade do edifício, dinamizar o espaço e criar condições para que a paisagem atraia visitantes. O forte está em risco, sim, e essa deve ser a prioridade, mas a sua salvaguarda também vai depender de uma boa manutenção que, a meu ver, carece de um plano pormenorizado que procure desenvolver a comunidade local mas que acima de tudo não comprometa a integridade do benemérito coletivo. Haja vontade e incentivo do poder político nacional e local.

Da parte do PAN foi apresentada uma recomendação ao Governo para que este garanta a salvaguarda do Forte de Santo António da Barra. Esperamos que surta efeito na preservação desta herança comum.

Para ampla reflexão deixo aos meus leitores três frases do Filósofo Michel Lacroix que considero extremamente elucidativas:
“O património oferece belezas que devem ser contempladas, obras do espírito e da arte por meio das quais os indivíduos tomam consciência de si próprios e acedem ao universal. Ao dar acesso a uma memória coletiva, permite inventar uma nova identidade.”

“Quinhentas batalhas foram assim travadas com um espírito de concórdia planetária, combates levados a cabo para proteger a beleza, a história, a natureza, a fim de poder transmiti-las intactas às gerações vindouras.”


“A Ação de salvaguarda, quer se trate dos bens culturais ou naturais, não poderá dispensar uma política de valorização e de educação muito activa, através da qual a cultura, as localidades, as paisagens, os monumentos, os costumes, as instituições, exercerão o seu poder «nutritivo» em muita gente.


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