EXCLUSIVO
Por EMANUEL CÂMARA08 agosto 2020

“O que está em causa é um
conflito judicial de partilha de herança”, confirmou a juíza, na leitura da
sentença, fazendo um histórico dos factos que constam no processo penal, concluindo
que os arguidos não praticaram nenhuma injúria na forma agravada, nem ofensa à memória
de pessoa falecida.
O tribunal reconheceu,
contudo, que a conduta dos arguidos “podia ser censurável do ponto de vista da
ética”, mas excluiu qualquer responsabilidade civil, por não ter havido conduta
ilícita daqueles.
Todavia, os assistentes e demandante foram
condenados no pagamento das custas do processo.
O caso foi despoletado por dois
requerimentos apresentados, em 2014, pela avó e madrasta, onde constava que o falecido
marido dela seria viciado em jogos de fortuna e azar, e um filho dele, fruto do
primeiro casamento e, entretanto, finado, seria dependente de estupefacientes.
Aquelas expressões estavam
inseridas em peças processuais que o advogado arguido elaborou em defesa da avó
e madrasta, por indicação desta última, numa providência cautelar de
arrolamento de bens, e num processo de inventário.
“Os arguidos não acusaram que o pai era
viciado no jogo, também não acusaram o filho de ser viciado em droga. Disseram
algo bastante diferente: não havia bens ou valores a relacionar porque o
falecido gastava muito dinheiro no jogo. E viu-se obrigado a sustentar o filho
porque este foi toxicodependente durante muitos anos, e teve de o ajudar
financeiramente”, concluiu a juíza.
Advogado “julgado sem qualquer fundamento”
“Não estão em causa afirmações gratuitas, mas, antes, proferidas no exercício do direito de liberdade de expressão, pretendendo os arguidos responder à acusação de que a viúva estava a sonegar bens da herança”, refere a sentença.
A juíza teve uma palavra de
apreço para o advogado, considerando que este “estava a ser julgado sem
qualquer fundamento”, tendo-se limitado a exercer o seu mandato forense, fazendo
constar em peças processuais aquilo que lhe era transmitido pela sua cliente.
“Os advogados têm um papel
muito importante na administração da justiça. Sem advogados livres e isentos
não temos justiça efectiva, e verdadeira, a funcionar. O srº doutor agiu bem e
tenho alguma pena que tenha sido arrastado para este processo”, sublinhou a
juíza.
E também disse à arguida: “
terá que discutir a questão dos bens no processo de inventário. Em termos
criminais, a sua conduta está justificada e não integra a prática de qualquer
crime”.
“Há que separar a matéria de
inventário, que discute os bens, e o que é crime. E nem tudo o que é discutido
no processo de inventário é crime. Ou seja, saber se foram relacionados todos
os bens, ou se existiam mais bens, isso é matéria do inventário”, explicou a
juíza.
“Na verdade, se olhássemos
isoladamente para aquilo que foi dito poderíamos estar perante expressões que
poderiam colocar em causa o bom nome das pessoas visadas”, admitiu.
Quanto às assistentes, disse
que estas “foram movidas pelo lado emocional e decidiram avançar para a acusação
particular. Mas para essas expressões serem crime era necessário algo
mais”.
Com efeito, na fase de
inquérito, o Ministério Público não acompanhou a acusação particular
“Sempre estiveram de costas voltadas”
O processo penal teve origem numa queixa apresentada em 2015 por uma neta e pelos enteados da arguida, filhos do primeiro casamento do pai, os quais “sempre estiveram de costas voltadas” para a madrasta, segundo foi declarado durante o julgamento.
No entendimento dos três assistentes
no processo-crime, as expressões utilizadas eram ofensivas da honra do filho, e
da memória do pai.
Porém, o tribunal discordou
dessa posição “por estarem em causa expressões que não têm uma carga
difamatória, e injuriosa, suficientes para atentar contra a memória e honra. São
condutas atípicas e, por isso, não têm dignidade penal”.
A sentença refere que não
foram provados como sendo verdadeiros os factos que estavam em causa no
julgamento. Nem que a arguida “ao fazer as declarações que fez, através do seu
mandatário, tivesse actuado com o propósito de ofender a memória e o bom nome
do marido, ou do enteado, bem como o seu património moral e espiritual”.
Com efeito, “não foi feita
prova de que o marido tivesse problemas com o jogo, ou fosse viciado no mesmo,
e que o filho dele tivesse sido viciado na droga. E tal não foi confirmado por
outros meios de prova”, adiantou.
Mais de 30 anos na Arábia Saudita
No entanto, “apurou-se que a arguida estava convencida da veracidade das suas declarações, tendo dito que o marido, sempre que vinha de férias a Portugal, frequentava o casino do Estoril, tendo chegado a ir com ele a um casino na Alemanha. E quando estava na Arábia Saudita, telefonava-lhe a dar instruções sobre como deveria jogar em Portugal. Também chegaram a ir, de propósito, a Évora e Badajoz, comprar lotaria. Gostavam de viver a vida e não se privavam de gastar dinheiro”, concluiu a juíza.
A arguida nunca trabalhou e foi
nomeada cabeça de casal da herança aberta por óbito do marido, em Dezembro de
2013, com o qual viveu quase 40 anos. Este trabalhou mais de 30 anos na Arábia
Saudita, auferindo um salário mensal de cerca de cinco mil euros.

Por sua vez, o advogado arguido
foi mandatário da arguida em vários processos, instaurados em 2014. E nestas
lides foram proferidas as expressões dirigidas ao marido finado e um filho
deste.
“Tudo não passa de perseguição familiar”
Nas alegações finais, o advogado que defendia o colega arguido disse que “tudo não passa de uma perseguição familiar, que tem mais de 40 anos”, e que se não houvesse litigio não teria havido processo-crime.
Aquele jurista recordou,
aliás, que a factualidade relatada pelas assistentes no processo penal ocorreu
no âmbito de outras lides processuais, sublinhando que “o advogado estava a ser
julgado pela peça processual que escreveu”.
Logo no início da primeira
audiência, a arguida sentiu-se mal e foi dispensada de estar presente, tendo
autorizado que o julgamento continuasse na sua ausência.
Por sua vez, o advogado
arguido declarou que a arguida recorreu aos seus bons ofícios após ter sido
acusada de desbaratar os bens do casal. Adiantou que esta acusação partiu dos
filhos do primeiro casamento do marido dela, os quais alegavam que havia mais
dinheiro na conta do pai.
Dinheiro escondido na Holanda
A procuradora do Ministério Público, que já tinha pedido a absolvição dos arguidos, disse que “a família esteve com um ressentimento que perdurou ao longo de décadas, quanto à postura do pai, que não terá sido a mais correcta”. Acrescentou que “o ressentimento maior terá sido o casamento”, com a arguida, que nunca foi aceite como nova esposa pelos filhos dele, os quais “questionavam o facto de ela viver num apartamento de luxo e não ter dinheiro para apresentar aos familiares”, no âmbito das partilhas da herança.
Na recta final do julgamento,
a advogada dos assistentes disse que a arguida “tentou ocultar, no processo de
inventário, a existência de dinheiro do casal, mas afinal esse dinheiro existe
e já foi encontrado. Oportunamente, em sede própria será discutido”. Revelou
ainda que a conta do falecido marido da arguida tinha um saldo médio mensal de
18 mil euros, e não tem um único movimento com gastos no casino.
A fazer fé no que foi revelado
por uma testemunha, o dinheiro reclamado pelos herdeiros estaria depositado em
contas bancárias na Holanda, para as quais a arguida teria transferido a maior
parte do salário do marido, além de prémios de produtividade que lhe eram pagos,
e que este inicialmente enviava para Portugal.
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